sábado, 25 de dezembro de 2010

Drama de Natal

Papai Noel não sabia em que colocar a culpa pelo seu Natal. Falou que poderia ser do Grinch e seu mal olhado. Inveja da parte de Cristo por ter a cena roubada todo ano. Ou apenas a velhice que parecia chegar de vez.

Depois de entregar todos os presentes, chegou em casa sem saber o que fazer primeiro. Queria sentar na poltrona para acabar com a dor nas costas, resultado de uma apertada chaminé.

Também queria passar um creme nas mãos, calejadas por segurar as rédeas. Ou cuidar das bolhas nos pés, que surgiram de tanto subir e descer as escadas dos prédios.

Talvez o melhor seria tomar logo um um anti-gripal, para não ficar doente pelo vento gelado no rosto a noite inteira. Antes, porém, gostaria de rever a lista de presentes. Afinal, não era comum tantos meninos ganhando bonecas e meninas ganhando carrinhos.

Foi com todos estes pensamentos na cabeça que ele encontrou o bilhete em cima da mesa. Reconheceu a caligrafia da mulher logo de cara, e quase teve um infarto ao ler o pedido de separação, seguido por um “espere notícias do meu advogado”.

Resolveu sentar-se, mas enquanto andava em direção da poltrona, um dos elfos entrou e o interrompeu. Pelo visto, Empinadora havia quebrado a pata durante a noite, e não poderia mais voar.

Com a irritação trincando seus dentes, Noel saiu de casa sem falar nada. Entrou na sua antiga oficina, de quando o Natal ainda não era um negócio tão grande, e saiu com sua antiga espingarda de dois canos nas mãos.

Foi na direção de Empinadora, e mesmo com os elfos gritando para ele parar, nada adiantou. O bom velhinho continuou seguindo em frente. Recarregando a espingarda e repetindo em voz alta que tudo iria ficar bem, como uma espécie de mantra.

Ele só não sabia se falava isso para a rena ou para si mesmo.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Depois de algum tempo

se pegou pensando sobre o que havia feito da própria vida. Coisa que faz todo ano, umas três vezes pelo menos, especialmente nesta data.

Queria fazer coisas, muitas coisas, mas o tempo parecia não cooperar. E quanto mais priorizou uma, mais as outras ficaram de lado.

Focou: hora nos amigos, hora na família, hora nos estudos e na carreira. Quis viver como se não houvesse amanhã, mas tinha os bolsos forrados de planos.

Mesmo parecendo que muito tempo havia passado, em apenas um piscar refez todos os seus passos. E foi por isso manteve os olhos bem abertos. Com medo que, da próxima vez que os fechasse, se passassem mais 22 anos.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Votação 2010

O principal motivo para ter escolhido minha primeira escola como zona eleitoral é a viagem em nostalgia que faço a cada dois anos. Para, assim, votar valer a pena.

Além de ver alguns rostos conhecidos, como o da antiga diretora em um quadro na parede, revi os trabalhos que eram comuns na minha infância. Recortes e colagens, ou pelo menos é assim que lembro de serem chamados.

Enquanto esperava a minha vez, no corredor, olhei os trabalhos dos alunos da quinta série. O tema: "O que é natureza para você?". Muitos recortes de matas verdes e de animais, retirados de páginas de revistas e de jornais.

Alguns trabalhos chamavam a atenção de cara. Como o menino que, ao invés de colar imagens de revistas, usou folhas de árvores. Uma forma de acabar o trabalho em 5 minutos, e ainda parecer criativo. Senti um pouco de inveja, afinal demorei até a oitava série para enrolar professores desse jeito.

Duas crianças de mesmo sobrenome tinham os trabalhos parecidos, com figuras bem recortadas e coladas. Provavelmente trabalho da mãe deles, enquanto os dois assistiam desenho comendo bolacha. Não que eu ache isso errado, até porque já fiquei jogando Super Nintendo com meus amigos enquanto seis mães desesperadas faziam o nosso trabalho.

Mas a medalha de ouro vai para o último trabalho, que vi pouco antes de votar. Recortes mostrando um quintal sem muito gramado e um piloto de Fórmula 1 desproporcionalmente grande. Quase surreal.

Ainda olhando este trabalho, fui chamado a votar. Confesso que já não estava mais preocupado com o futuro do país, mas sim com o daquele menino. Que acredita que natureza não passa de um quintal e um piloto de corrida.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Pós-eleições

Juninho ficou triste quando o seu candidato não ganhou a eleição. Ele não tinha idade para votar, mesmo assim ficou triste. Não pelas propostas, mas sim pelo que sua família falava e seus amigos também, repetindo os discursos paternos.

Não que Juninho tenha chorado. Afinal, a sensação de perder uma eleição não era como aquela de quando ganhou um tênis Nike cinza, mesmo tendo pedido um branco. Verdade seja dita, ele ainda estava se recuperando desse trauma.

Juninho resolveu usar o twitter para dizer tudo o que achava das eleições, e daqueles que botaram o outro candidato no poder. 140 caracteres recheados de palavrões. Ele não sabia o significado de um deles, mas já tinha ouvido a mãe falar algumas vezes.

Depois de mais alguns twitts inconformados, todos com a palavra ignorante em caixa alta, Juninho decidiu fazer os trabalhos da escola. Especialmente para provar que não era como aquelas pessoas sem estudo do outro lado do país.

Abriu o Wikipédia, buscou Castro Alves, deu ctrl-c/ctrl-v e imprimiu. Juninho abriu um grande sorriso, orgulhoso por ser tão esperto.


p.s.: post sem intenções políticas, até porque não apoiei nenhum dos candidatos.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

A Poltrona 40

Muitas vezes a gente confunde azar com sorte, como quando comemora um dia de sol apenas para ser pego sem guarda-chuva mais tarde. Ou quando vai à rodoviária, e compra a última passagem do próximo ônibus. Neste caso, a poltrona 40.

Você sabe que tem algo de errado com ela, mas aceita do mesmo jeito. Como acontece quando se é novo em um lugar, e só uma pessoa o recebe bem. Você fica contente, mas sabe que tem algo de errado para os outros se afastarem daquela pessoa, do coitado.

E, igual a vida do coitado, é a da poltrona 40. Em todos os seus aspectos, até mesmo em suas companhias. Sempre tem alguém do grupo que não consegue fugir do coitado. Não é igual a ele, mas por algum motivo estão sempre juntos. No caso da poltrona 40, é a poltrona 39.

E a pessoa que senta na poltrona 39 representa exatamente o perfil dela. É sempre alguém que, ou fala muito, ou fala pouco. No caso do seu embarque em específico, um bombado monossilábico que não se contenta com o espaço da própria poltrona.

Você espera que durante a viagem sejam apenas estes os seus companheiros: a poltrona 40 e a poltrona 39, com o bombado. Mas não, a poltrona 40 não pode ter uma viagem tão fácil. Você esqueceu de dois elementos: o corredor e o banheiro.

Normalmente o corredor não é mal com as outras poltronas, porque ele respeita elas. Mas não a poltrona 40. Esta poderia se aposentar apenas processando o corredor por bullying. Afinal, todos que usam o corredor ao lado dela, vão ou ao banheiro, ou pegar água.

Mesmo que seja apenas para pegar água, sempre usam a poltrona 40 como apoio. Seja para apoiar a mão ao lado da sua cabeça, ou para apoiar a bunda, que foi um sucesso na década de 90, em sua bochecha esquerda.

Até aí, você começa a entender a triste vida da poltrona 40. Fora você, ela tem apenas o amigo que não fala nada, e que provavelmente não gosta dela, o tirador de sarro que não deixa nada escapar e, o pior de todos, o valentão. Sim, o banheiro é o valentão do ônibus.

Ninguém mexe com ele ou se levanta contra ele. Ele pode fazer a merda que bem entender e ferrar com toda a sua viagem. A menos que tenha perdido o sentido do olfato, você sentirá seus socos tirarem sangue do seu nariz.

E ele não dá sossego nunca. Você vai apanhar durante a viagem toda, com todas as outras poltronas olhando, e não vai poder fazer nada. Porque, ao sair uma criança sem controle da bexiga, entra um senhor orgulhoso da sua feijoada de domingos. É um murro atrás do outro, alguns fortes e outros fracos.

As poltronas 38 e 42 também podem reclamar da dor, mas não tanto quanto a 40. A porta do banheiro foi construída para, ao abrir ou fechar, projetar um sopro de ar direto na Poltrona 40.

Por isso, da próxima vez que fizer uma viagem de ônibus, mantenha-se distante da Poltrona 40. A menos que você queira dar uma força. A coitada está precisando.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O Primeiro Filho.

Pedro saiu da sala de parto vibrando, dava socos no ar e gritava de alegria. Sua namorada havia dado a luz a um menino. Todos se surpreenderam pela sua reação, diferente da tristeza que acompanhava a gravidez precoce. Ele, que mal falava no último mês, parecia não se conter com tantas palavras e frases se espremendo entre os lábios.

O pai levantou-se de um pulo, esperando pelo abraço que não veio. A mãe fez a mesma coisa, mas também ficou com os braços pendendo no ar. Pedro foi na direção de seu amigo de infância, Toshiro. Abraçou-o com lágrimas nos olhos e, gaguejando de felicidade, disse:

- Obrigado, Toshiro! Muito, muito obrigado!

Abriu o abraço e, ainda com as mãos nos ombros do amigo, continuou:

- O bebê é japonês!

Soltou o companheiro e, rindo, correu para casa se arrumar para a festa que iria à noite. Solteiro.

sábado, 11 de setembro de 2010

Escritor Maldito 2.0

Começa o dia acordado por um celular imitando um telefone velho. Joga uma água no rosto, que vale por um banho rápido. Come um pedaço de pão, toma um gole de água e resolve trabalhar.

Liga o computador. Pirateia a wireless do cybercafé embaixo de seu prédio. Acessa seu blog e vê que a quantidade de cliques são as mesmas de sempre. Apenas os dele. Clica no banner da Loja China logo em cima, com medo de perder seu único mecenas.

Abre um doc em branco e começa a escrever. As teclas descem e sobem enquanto o relógio no canto da tela segue indiferente. Depois de algumas horas, se depara com o asdasdasd formado pelo tamborilar dos seus dedos no teclado.

Buscando inspiração, resolve rever a sua musa. Acessa o Orkut e deixa seus olhos passearem pelas fotos desbloqueadas. O sol sobe o oeste, e ele percebe que tem que voltar ao trabalho. Maximiza o doc que, sem notar, volta a preencher com asdasd.

Depois do almoço, começa a busca por referências. Abre um pdf da Divina Comédia, que lê até a luz da tela cansar os olhos. Volta ao doc sem cor, com uma pequena ideia do que escrever. Fita o teclado para descansar os olhos, e para manter os dedos longes das teclas A, S e D.

O sol começa a deitar. Suas palavras começam a faltar, e ele para antes mesmo de preencher uma página. Lê o que escreveu, não gosta, e fecha sem salvar. Visualizando a si mesmo rasgando um pobre manuscrito.

Irritado, resolve sair para encher a cara. Veste uma jaqueta surrada. Vasculha sua carteira e sai de casa com um cartão nas mãos. Mesmo sabendo que não vai conseguir pagar qualquer conta de bar com ele.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Heil, Alberto.

Para Alberto, nada definiu tanto sua vida como o seu nome. Tinha muito orgulho da sua origem alemã. Além dos seus genes 12,5% arianos.

Possuía uma braçadeira com uma suástica, que só usava em casa. Também tinha o costume de comer salsichas, tomar chope e cuidar de seus pastores alemães: Führer e Goebbels.

Falava alemão fluente, mesmo nunca tendo pisado no país. Desgostava do terceiro mundo onde vivia, e evitava todos aqueles que não pertenciam a raça pura. Ou que tivessem uma pequena porcentagem dela.

Alberto morreu de forma trágica, atropelado na frente da própria casa. O motorista do Audi, distraído, observava o Goebbels e o Führer transando no jardim.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

O começo de um dia.

Não me lembro de despertar sem ser com o celular. Algumas vezes era minha mãe que me acordava, mas na maioria era um Samsung que tive quando os celulares ainda eram novidade. Provavelmente nunca usei um despertador de verdade.

A música tocando não quer dizer que irei acordar. Já desliguei sem lembrar. Deixei tocar até acabar a bateria. E, principalmente, me convenci a continuar dormindo. Aliás, sou bom nisso.

Sei convencer a mim mesmo melhor do que qualquer pessoa. Tenho argumentos que não consigo derrubar. E agora, desempregado, ficou ainda mais fácil.

É como um tribunal onde sou o advogado, o juiz e até o escrivão. Hoje, inclusive, o promotor apelou para o clichê “Deus ajuda quem cedo madruga”. A defesa alegou que o horário não combinava com a palavra cedo. Eles começaram a discutir. O juiz bateu o martelo.

Virei para o outro lado e voltei a dormir.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Os trabalhos de Hércules valem um cisco. Dois, não.

Hércules, filho de Zeus, matou o leão de Nemeia e a Hidra de Lerna. Capturou a Corça de Cerineia e o Javali de Erimanto. Desviou o curso de dois rios para lavar os currais do Rei Aúgias. Destronou a rainha das amazonas. Castigou o gigante Diómedes, filho de Ares. Montou o terrível Touro de Creta. Exterminou o gigante Gerion, monstro de três corpos, seis asas e seis braços. Segurou os céus para que Atlas colhesse os pomos de ouro do Jardim das Hespérides. Trouxe o cão Cérbero do mundo dos mortos apenas com a força. Libertou Prometeu de seu martírio. Estrangulou o gigante Anteu, filho de Gaia. Criou o Estreito de Gibraltar separando dois montes. E, depois disso tudo, ganhou uma piscada de seu pai.

Igual a um cisco.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Salada de Frutas

De olhos vendados no pátio, um menino diz não enquanto seu amigo pergunta se ele quer beijar a menina da vez. Sua resposta continua essa, até que ele ouve mais ênfase na pergunta e, conforme combinado mais cedo, aceita. Segundo o trato, na sua frente está a maior gata da quarta série, apenas esperando por ele. Perguntam: pêra, uva, maçã ou salada mista?

Salada mista, responde ele decidido.

Tiram a venda, e a menina é o contrário daquela que ele esperava. Droga, pensa, deveria ter escolhido pêra.

domingo, 9 de maio de 2010

A maior dedicatória da minha vida.

No começo da minha história, era apaixonado por ela. Ela que me ensinou a escrever sem gastar tinta com palavras erradas. A não julgar ninguém pela capa e a respeitar o estilo literário de cada um. Continuamos assim pelos próximos capítulos, com ela cuidando para que nenhuma folha minha fosse dobrada.

Depois de algum tempo as coisas mudaram, e senti até um pouco de vergonha. Principalmente quando ela fazia questão de relembrar uma página que eu preferia esquecer. Ou quando me chamava por algum nome que não devia sair do meu prefácio.

Outros personagens entraram em minha história, e ela ficou cheia de ciúmes. Então comecei a tomar minhas próprias decisões, e ela fazia de cada capítulo um drama. Mas tudo isso passou, e cresci para me tornar um personagem complexo, até mesmo para ela.

A história continuou e, atualmente, dedico um capítulo por ano só para ela. E faço de tudo para que seja inesquecível, para que a minha história e a dela voltem a ser uma só.


* Mesmo minha Mãe dizendo que todo dia é Dia das Mães, preferi postar antes da meia-noite.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Mar

Ele adorava o mar. Adorava as ondas, a brisa, os peixes e até o enjôo que sentia. Gostava tanto de tudo, que finalmente comprou um veleiro e foi navegar.

Descobriu que sua paixão pela imensidão azul beirava a obsessão. Ele queria içar a vela, guiar o leme e até limpar o convés. Tudo sozinho. Tudo ao mesmo tempo.

Não foi à toa que seu barco afundou.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Porteiro

Desde pequeno que o sonho de Paulo era ser porteiro. Queria uma vida igual a deles, conversando com todos, divertindo as crianças e sabendo sobre tudo. Mas ele era tímido, não gostava de futebol e horrível para lembrar de recados.

Pobre Paulo: virou médico.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Casamento

A música começa a tocar. Todos viram para a entrada e se emocionam com a entrada da noiva. A igreja se enche de suspiros enquanto ela caminha até o altar. Elogios sussurrados, familiares emocionados e lágrimas derramadas. Tudo para ela, apenas para ela.

O padre começa seu longo discurso. Falando de Deus e do amor entre homem e mulher. O amor entre ela e seu marido. Palavras bonitas, sensíveis e profundas. Feitas especialmente para ela.

O padre pede as alianças. Uma menina de dois anos aparece na entrada, com as alianças nas mãos e os cachinhos pelos ombros. Ela atravessa a igreja em seu vestidinho rosa, despertando todas as reações possíveis: suspiros, lágrimas, elogios, sorrisos e inveja. Inveja estampada na cara da noiva, que só pensa em esganar sua prima caçula.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Roda Gigante

Ele já havia se apaixonado e perdido. Fazia muito tempo, mas ele continuava em estado de choque: comia mal, dormia mal e vivia mal. Seus amigos insistiram, e finalmente ele tirou férias. Estavam em três em um parque de diversões onde ele não se divertia. Os outros dois queriam a montanha russa, ele só queria andar por aí, e foi o que aconteceu.

Sozinho, caminha pensando em como seria melhor se ela estivesse ali. Vê crianças correndo, e pensa nos filhos que não tiveram. Acha que vai chorar, mas as lágrimas acabaram. Anda em direção a roda gigante, flertando um possível pulo do alto, sorri com a idéia.

Já na roda, sua tristeza desaparece. Ela é linda, a atendente da roda gigante. Seu coração sobe e desce, coincidência engraçada, pensa. Morena com a pele clara, sorrindo para crianças que passam. É ela, pensa, que acabará com a sua amargura.

Ela abre a porta do brinquedo para ele entrar, pensa no que falar, e até tenta falar, mas não consegue. A porta fecha, e ele sobe. Tem um giro inteiro pela frente. Até pode imaginar quando os amigos dele verem os dois. Quando ele a apresentar para os seus pais, e quando seu sobrinho ficar cativado pela nova tia. Burro, pensa, deveria ter lido o nome dela no crachá. É difícil planejar sua vida com alguém sem saber o seu nome.

Gira 180 graus e para. Olha todo o parque do alto, com um sorriso no rosto. Ri sozinho, o que assusta as duas crianças que dividem o banco com ele. Imagina que o seu sorriso deve ser o maior do parque, inclusive em altura, ri de novo da própria piada.

A roda mexe, ele desce. Aproveita o tempo e planeja as frases, ensaia o sorriso e analisa se chama para tomar um sorvete ou para um jantar. Ela gosta de crianças, sorvete então.

A roda desce e para, seu coração faz o mesmo. Quem abre a porta não é ela, mas uma atendente ruiva. Menos bela, e menos apaixonante. A tristeza está voltando quando ele, aborrecido, desce do brinquedo e derruba o celular no chão, aos pés da ruiva. Os dois se abaixam para pegar ao mesmo tempo. Ele sorri para ela. Para quem já planejou tanta coisa, mudar a cor do cabelo não seria um problema.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Anormal

Acordou mais atrasado que o normal.
Se arrumou mais apressado que o normal.
Tomou café, saiu de casa e entrou no ônibus mais rápido que o normal.

Sentou em um banco que não era o seu normal.
Ao lado de uma mulher com uma beleza fora do normal.
Puxou papo. Conversaram. Se gostaram e marcaram de se ver.

Tudo muito anormal.

Cinema a noite: filme ruim e pipoca ruim.
Voltou para casa sozinho e aliviado.
Sua vida havia voltado ao normal.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Don Camilo

Todos sabem que Don Camilo não perde. Que, no poker, não existe ninguém melhor. Isso lhe rendeu status, fama e poder. Durante anos, poucos ousaram desafiar Don Camilo. E, com vergonha e sem dinheiro, os perdedores desaparecem no mundo. Era como se houvesse uma maldição sobre os que perdem para ele. E todos perdem.

Antônio já havia ganho campeonatos de poker, coisa pequena, dinheiro o suficiente para se manter e comprar um carro popular. Mas tinha talento e pressa. Por isso desafiou o grande Don Camilo para subir logo ao topo. Vendeu o carro, hipotecou a casa e emprestou dinheiro dos concorrentes de Camilo em outros negócios, relacionados a Colômbia ou algo parecido.

Na casa de Don, em uma mesa redonda, Antônio espera com mais dois homens. O primeiro, o próprio filho do satanás, o primogênito do dono da casa. Famoso por gostar de poker, mas perder grandes quantias em jogos. O segundo, um veterano dos grandes torneios, que durante anos juntou coragem para desafiar o grande jogador.

Don entra na sala. Perto dos seus 60 anos, o diabo tem uma barriga e uma papada que falam algo sobre respeito e poder. Terno risca de giz e um chapéu com o mesmo estilo. Antônio não achava que estereótipos assim ainda existissem. Parece que o próprio Winston Churchill havia desistido da guerra para jogar baralho.

Ele acende um charuto, o dealer se aproxima, e o jogo começa. Antônio repara que o filho de Don tem a mesma habilidade para baralho que uma foca selvagem. E não se surpreende por ele sair primeiro com um blefe ridículo. Já o profissional demora mais tempo, mas logo aposta todo seu jogo em uma trinca e perde para um full house do Don.

Sobram apenas os dois na mesa. A experiência contra o talento. Don olha pela primeira vez para os olhos de Antônio e faz um sinal com a cabeça. Parabenizando o adversário. Os dois sabem esconder o jogo, os dois sabem se arriscar na hora certa e os dois sabem a hora de fugir. Horas se passam, charutos se acabam e a sorte de Antônio mostra a sua cara. Sua quantidade de fichas já é o dobro das de Don.

Apenas o novo, o velho e o dealer continuam na sala. Antônio aposta a quantia de fichas de Don, olha para suas cartas, olha para os olhos do adversário, e rapidamente volta a encarar sua mão. O velho capta esse olhar e encontra ali um blefe. Confiante em sua trinca de reis, ele paga para ver.

Os lábios de Antônio esboçam um sorriso. Ele mostra sua mão com dois ases, e um terceiro na mesa. O Don abre as cartas, assumindo a derrota. O vencedor abre os braços para juntar suas fichas. Feliz o bastante para não ouvir um estalido de metal, seguido pelo som característico da pólvora ecoando em um cano de revólver. A dor e a surpresa chegam ao mesmo tempo. E com elas, o verdadeiro motivo pelo qual ninguém, absolutamente ninguém, vence Don Camilo.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Rafaela

A Rafinha tem 1,65 de altura, cabelos loiros, seios fartos e um rosto lindo. Ela ganha a vida com sexo, mas não do jeito que você está pensando. Ela deixa mulheres felizes, mas também não é do jeito que você está pensando.

Ela é contratada por esposas para ser a amante de seus maridos infiéis, e fazê-los sofrer com o mais doloroso movimento de pélvis que existe.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Filmagem

Tudo está errado, muito errado. Ele não entende como tratam tão mal alguém como ele, simplesmente não entende. Para começar: o seu suco não é natural, a sua cadeira fica longe da cadeira do diretor e o seu camarim não existe.

Enquanto espera pela sua cena, ele pensa em como a industria cinematográfica decaiu. Lembra de como era melhor tratado nos anos 90, e dos antigos falando com saudades da década de 80. Enquanto, hoje, ninguém sabe como tratar uma estrela.

Falta pouco, agora. A maquiadora aparece para fazer seu trabalho, muito de qualquer jeito, na opinião dele. Troca suas roupas pelas da cena, no mesmo espaço onde outras também se trocam. Pragueja, de novo, pela falta do seu próprio camarim.

Mudança de cena, chamam seu nome. Ele caminha até o seu lugar, relembrando a cena mentalmente para não cometer nenhum erro. No caminho, um camera bate ombro a ombro com ele. Uma provocação clara.

Já chega, pensa. Memoriza o rosto do camera e planeja como acabar com a carreira dele e dos outros relacionados a esse filme. Porque ninguém, absolutamente ninguém, tem o direito de destratar o figurante morto número 21.