sábado, 27 de fevereiro de 2010

Roda Gigante

Ele já havia se apaixonado e perdido. Fazia muito tempo, mas ele continuava em estado de choque: comia mal, dormia mal e vivia mal. Seus amigos insistiram, e finalmente ele tirou férias. Estavam em três em um parque de diversões onde ele não se divertia. Os outros dois queriam a montanha russa, ele só queria andar por aí, e foi o que aconteceu.

Sozinho, caminha pensando em como seria melhor se ela estivesse ali. Vê crianças correndo, e pensa nos filhos que não tiveram. Acha que vai chorar, mas as lágrimas acabaram. Anda em direção a roda gigante, flertando um possível pulo do alto, sorri com a idéia.

Já na roda, sua tristeza desaparece. Ela é linda, a atendente da roda gigante. Seu coração sobe e desce, coincidência engraçada, pensa. Morena com a pele clara, sorrindo para crianças que passam. É ela, pensa, que acabará com a sua amargura.

Ela abre a porta do brinquedo para ele entrar, pensa no que falar, e até tenta falar, mas não consegue. A porta fecha, e ele sobe. Tem um giro inteiro pela frente. Até pode imaginar quando os amigos dele verem os dois. Quando ele a apresentar para os seus pais, e quando seu sobrinho ficar cativado pela nova tia. Burro, pensa, deveria ter lido o nome dela no crachá. É difícil planejar sua vida com alguém sem saber o seu nome.

Gira 180 graus e para. Olha todo o parque do alto, com um sorriso no rosto. Ri sozinho, o que assusta as duas crianças que dividem o banco com ele. Imagina que o seu sorriso deve ser o maior do parque, inclusive em altura, ri de novo da própria piada.

A roda mexe, ele desce. Aproveita o tempo e planeja as frases, ensaia o sorriso e analisa se chama para tomar um sorvete ou para um jantar. Ela gosta de crianças, sorvete então.

A roda desce e para, seu coração faz o mesmo. Quem abre a porta não é ela, mas uma atendente ruiva. Menos bela, e menos apaixonante. A tristeza está voltando quando ele, aborrecido, desce do brinquedo e derruba o celular no chão, aos pés da ruiva. Os dois se abaixam para pegar ao mesmo tempo. Ele sorri para ela. Para quem já planejou tanta coisa, mudar a cor do cabelo não seria um problema.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Anormal

Acordou mais atrasado que o normal.
Se arrumou mais apressado que o normal.
Tomou café, saiu de casa e entrou no ônibus mais rápido que o normal.

Sentou em um banco que não era o seu normal.
Ao lado de uma mulher com uma beleza fora do normal.
Puxou papo. Conversaram. Se gostaram e marcaram de se ver.

Tudo muito anormal.

Cinema a noite: filme ruim e pipoca ruim.
Voltou para casa sozinho e aliviado.
Sua vida havia voltado ao normal.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Don Camilo

Todos sabem que Don Camilo não perde. Que, no poker, não existe ninguém melhor. Isso lhe rendeu status, fama e poder. Durante anos, poucos ousaram desafiar Don Camilo. E, com vergonha e sem dinheiro, os perdedores desaparecem no mundo. Era como se houvesse uma maldição sobre os que perdem para ele. E todos perdem.

Antônio já havia ganho campeonatos de poker, coisa pequena, dinheiro o suficiente para se manter e comprar um carro popular. Mas tinha talento e pressa. Por isso desafiou o grande Don Camilo para subir logo ao topo. Vendeu o carro, hipotecou a casa e emprestou dinheiro dos concorrentes de Camilo em outros negócios, relacionados a Colômbia ou algo parecido.

Na casa de Don, em uma mesa redonda, Antônio espera com mais dois homens. O primeiro, o próprio filho do satanás, o primogênito do dono da casa. Famoso por gostar de poker, mas perder grandes quantias em jogos. O segundo, um veterano dos grandes torneios, que durante anos juntou coragem para desafiar o grande jogador.

Don entra na sala. Perto dos seus 60 anos, o diabo tem uma barriga e uma papada que falam algo sobre respeito e poder. Terno risca de giz e um chapéu com o mesmo estilo. Antônio não achava que estereótipos assim ainda existissem. Parece que o próprio Winston Churchill havia desistido da guerra para jogar baralho.

Ele acende um charuto, o dealer se aproxima, e o jogo começa. Antônio repara que o filho de Don tem a mesma habilidade para baralho que uma foca selvagem. E não se surpreende por ele sair primeiro com um blefe ridículo. Já o profissional demora mais tempo, mas logo aposta todo seu jogo em uma trinca e perde para um full house do Don.

Sobram apenas os dois na mesa. A experiência contra o talento. Don olha pela primeira vez para os olhos de Antônio e faz um sinal com a cabeça. Parabenizando o adversário. Os dois sabem esconder o jogo, os dois sabem se arriscar na hora certa e os dois sabem a hora de fugir. Horas se passam, charutos se acabam e a sorte de Antônio mostra a sua cara. Sua quantidade de fichas já é o dobro das de Don.

Apenas o novo, o velho e o dealer continuam na sala. Antônio aposta a quantia de fichas de Don, olha para suas cartas, olha para os olhos do adversário, e rapidamente volta a encarar sua mão. O velho capta esse olhar e encontra ali um blefe. Confiante em sua trinca de reis, ele paga para ver.

Os lábios de Antônio esboçam um sorriso. Ele mostra sua mão com dois ases, e um terceiro na mesa. O Don abre as cartas, assumindo a derrota. O vencedor abre os braços para juntar suas fichas. Feliz o bastante para não ouvir um estalido de metal, seguido pelo som característico da pólvora ecoando em um cano de revólver. A dor e a surpresa chegam ao mesmo tempo. E com elas, o verdadeiro motivo pelo qual ninguém, absolutamente ninguém, vence Don Camilo.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Rafaela

A Rafinha tem 1,65 de altura, cabelos loiros, seios fartos e um rosto lindo. Ela ganha a vida com sexo, mas não do jeito que você está pensando. Ela deixa mulheres felizes, mas também não é do jeito que você está pensando.

Ela é contratada por esposas para ser a amante de seus maridos infiéis, e fazê-los sofrer com o mais doloroso movimento de pélvis que existe.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Filmagem

Tudo está errado, muito errado. Ele não entende como tratam tão mal alguém como ele, simplesmente não entende. Para começar: o seu suco não é natural, a sua cadeira fica longe da cadeira do diretor e o seu camarim não existe.

Enquanto espera pela sua cena, ele pensa em como a industria cinematográfica decaiu. Lembra de como era melhor tratado nos anos 90, e dos antigos falando com saudades da década de 80. Enquanto, hoje, ninguém sabe como tratar uma estrela.

Falta pouco, agora. A maquiadora aparece para fazer seu trabalho, muito de qualquer jeito, na opinião dele. Troca suas roupas pelas da cena, no mesmo espaço onde outras também se trocam. Pragueja, de novo, pela falta do seu próprio camarim.

Mudança de cena, chamam seu nome. Ele caminha até o seu lugar, relembrando a cena mentalmente para não cometer nenhum erro. No caminho, um camera bate ombro a ombro com ele. Uma provocação clara.

Já chega, pensa. Memoriza o rosto do camera e planeja como acabar com a carreira dele e dos outros relacionados a esse filme. Porque ninguém, absolutamente ninguém, tem o direito de destratar o figurante morto número 21.