sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Feliz Natal

Já era quase Natal, as pessoas iam para suas casas, para suas famílias, para suas festas. Mas, para ela, era um pouco diferente.

Dentre todas as pessoas no mundo, ninguém imaginaria que ela, logo ela, passaria o Natal sozinha. Sem uma pessoa para brindar, ou algum presente para receber.

Pegou-se pensando se esse ano seria diferente. Se uma visita, qualquer que seja, apareceria em sua casa. Mas sabia que isso não aconteceria. Que era tolice alimentar esperanças.

Em sua casa, estendeu-se no sofá e ligou o som com a música no máximo. Assim não precisaria ouvir os barulhos e risos felizes que insistiam em atravessar as paredes e chegar aos seus tímpanos.

Ouviu a porta abrir. Viu seu marido entrar, pegar um chapéu, e sair correndo para o trabalho. Com um “Feliz Natal” dito às pressas no meio de tudo. Suspirou. Ele iria trabalhar na noite de Natal, para variar.

Levantou e caminhou até as bebidas dele. Preparou um copo de whisky com gelo para ela mesma. Voltou para o sofá e ali ficou. Esperando o Natal acabar. Bebendo. Sozinha. Sem ninguém.

Porque não havia nada mais triste no Natal, do que ser a verdadeira Mamãe Noel.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Em uma praça

Ela sentou no mesmo banco que ele, mas ainda mantendo distância.

Ele olhou e sorriu, sem saber que sorria. Com tantos outros bancos vagos, ela sentou logo no mesmo. Mas longe o bastante para não demonstrar arrependimento.

Ela havia errado, havia exagerado, e agora sabia disso. Que havia feito besteira. Mas seu orgulho era demais para pedir desculpas.

Ele notou o arrependimento no olhar dela. Notou os braços que se abraçavam por não saber o que fazer. Notou principalmente o cabelo, que ela tanto cuidava, desarrumado.

Ela levantou os olhos e encontrou os dele em resposta. Abriu a boca, mas a voz nem da garganta saiu.

Ele riu, sem malicia. Moveu um pouco para o lado e passou o braço por cima dos ombros dela.

Ela enfiou o rosto na camisa dele, o abraçou, e chorou.

Eles ficaram ali. Pouco tempo ou muito tempo, eles discordariam. Ele descreveria como minutos. Ela, como horas.

Até que, ainda rindo, ele afastou o abraço dela e se levantou. Tirou a carteira do bolso e caminhou pelo parque. Um pouco envergonhado por dar o braço a torcer.

Ela ganhou. E sabia disso. Limpou as lágrimas e continuou sentada. Comemorando enquando assistia seu pai procurar outro balão para comprar.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Brilho

Não sabia de onde havia vindo. Só sabia que existia. Era uma noite estrelada quando ele saiu do chão e, sem saber o porque, subiu rapidamente aos céus. Algo ardia dentro dele, o impulsionava. Subiu fazendo barulho, brilhando e rindo.

Quando notou, não estava sozinho. Olhou em volta e viu outros iguais a ele. Subindo, brilhando e rindo. Parecia uma competição entre quem ia mais alto, quem brilhava mais, ou quem fazia mais barulho. Todos se divertiam, mesmo sem saber porque estavam ali.

Então observou que muitos já estavam a sua frente, e que, quando chegavam, ao céu brilhavam mais que durante todo o caminho até lá. Mas, logo depois, desapareciam. Então o medo lhe veio. Medo sobre o que acontecia depois do grande brilho, do grande estouro, do grande riso. Depois de desaparecer.

Olhou para baixo e viu o chão, lotado de pessoas assistindo ele subir, com os olhos vidrados. Viu crianças com a boca aberta, agarradas as roupas dos mais velhos. Olhou para cima, e viu outros como ele subir, brilhar e sumir. Então percebeu, que não importava o que havia do outro lado. A subida e o fim inevitáveis, mas também eram tão belos, que valiam a pena.

Por isso fez força e subiu ainta mais alto e mais rápido. Rindo alto e fazendo barulho. Então no seu grande momento. No seu último brilho. Não havia nada além da alegria pela bela subida que havia feito. E, naquela noite, ele se foi sabendo que havia sido o mais belo dos fogos em um céu estrelado.

Recomeço

Não sabia o porquê, mas precisava escrever. Escrever qualquer coisa, com ritmo ou não, com personagens ou não. Já havia dias que escrevia mentalmente. Personagens, cenas e histórias.

Mas não sabia o que fazer, assim deixando elas de lado. Esquecia o nome das personagens e o motivo das histórias. Mas sabia que estavam lá, quietas, esperando pular para as letras e ganhar vida.

Decidiu. Voltaria a escrever. Não porque esperava ganhar algo com isso, mas porque gostava. Ligou o computador. Colocou uma música ao fundo. Sentou e esperou.

Nada veio. Trocou a música uma, duas, dez vezes. De nada adiantou. Xingou e se levantou. Já estava alcançando o controle da TV quando parou. E, com o olhar perdido no nada, refletiu. Refletiu tanto que voltou para o teclado.

Assim recomeçou do mesmo jeito que, um dia, começou.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Então, o que acha do inferno? [2]

Carlos, por acidente, encontrou sua mulher no inferno. Surpreso, a observou de longe durante um tempo. Quem diria, a Renatinha no inferno. Logo ela, que sempre fazia tudo certo: organizada, bem humorada, confiável e bondosa com tudo e com todos. Se havia alguém que ele nunca mais imaginou ver, era ela. Pensou no quanto ela devia ter mudado depois de sua morte, pobrezinha.

Carlos acenou de longe, ela não viu. Ela estava olhando para baixo, com o olhar perdido, e não viu quando ele se aproximou.

- Oi!
- Oi, nossa! Carlos?
- Eu mesmo. Quanto tempo, não?
- É, da última vez você tava…
- Morto?
- É!
- Pois é. Nunca imaginei encontrar logo você por aqui.
- Uhum – ela sorriu sem graça.
- Qual o motivo que trouxe você aqui?
- Todos os motivos?
- Não, só o principal.
- Adultério.
- Nossa. Então você casou depois da minha morte?
- …

E, no silêncio dela, Carlos descobriu um pouco mais sobre a dor do inferno.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Acidente

Perto da meia noite, durante a chuva, um carro derrapou por causa dos pneus carecas. O motorista ficou sozinho no meio da estrada. Sofreu um ferimento grave pela falta do cinto de segurança que, a tempos, havia quebrado.

Sentindo a morte perto ele resolveu usar seu último esforço e se declarar para o grande amor da sua vida. Pegou o celular e com dificuldade discou o número. Do outro lado da linha:

- Você não possui créditos para realizar chamadas.

E, pela primeira e última vez, o motorista se arrependeu de ser tão mão de vaca.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Amor

O coração dela bate acelerado. As mãos suam e os olhos não piscam.
- Ana Lúcia?
- Sim?
- Todo este tiempo que estamos juntos, tem sido o mais feliz da minha vida.
- Uhum…
- E yo gostaria que durasse más, mucho más.
- Oh, Henrico – os olhos dela se enchem de lágrimas ao ver a caixinha preta.
- Você aceita ser minha mujer? Na alegria? Na tristeza? Na saúde e na doença? Para siempre? Para todo siempre?
- Aceito! Claro que aceito.

Eles se abraçam e se beijam.
Ela pensando no casamento.
Ele no green card.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Horário de Almoço

11:50

Faltam 10 minutos para seu horário de almoço, e Antônio já começa a errar pequenas coisas no trabalho. Na realidade, já faz meia hora que perdeu o foco e só consegue pensar no almoço.

Não porque esteja com fome, muito menos por estar cansado. Mas por um motivo de um metro e setenta, cabelos castanhos, pele clara e um par de olhos castanhos que, para os outros, não tem qualquer graça. Mas para Antônio, a... para Antônio aquele olhar é o paraiso.

12:00

Chega de trabalho para Antônio. Levanta-se, veste o casaco e deixa para trás aquela colméia de cubiculos.

Um sorriso aparece em seu rosto, agora começou a melhor hora do seu dia. A que faz o dia valer a pena, quando anda vinte quadras a mais e não sente qualquer diferença. Quando gasta o dobro do seu vale para vê-la. Quando faz tudo para isso.

No caminho passa frente a uma loja de flores. Pensa se deve comprar um buquê. Afinal de contas, já fazem quatro meses. Não que namorem a quatro meses, não que se conheçam a quatro meses, não que ela sequer saiba que o nome de Antônio é Antônio. Mas, na cabeça dele, é um aniversário.

12:30

Antônio senta-se a mesa e espera ser atendido. Descartou a idéia do buquê no caminho, ficou com medo de assustá-la. Algo incrivelmente esperto, principalmente vindo de Antônio.

O alvo do seu afeto sai da cozinha, com seu usual uniforme amarelo claro e um avental vermelho. Os cabelos castanhos enrolados em um coque, e uma redinha em volta. O coração de Antônio bate mais forte.

Ela anda em sua direção, Antônio sorri e ensaia mentalmente como o pedido do cardápio. Mas ela passa reto e outra garçonete toma seu lugar. Um pouco mais baixa e mais velha, com a metade da beleza e o dobro do peso. Ela para ao lado de Antônio com uma caneta e um bloquinho em mãos.

Antônio diz que vai esperar um pouco. Mas a garçonete, cuja respiração lembra um rinoceronte com asma, não sai do seu lado. Ele desiste, “não é hoje”, pensa. Pede o prato do dia e uma coca-cola.

12:45

Seu almoço chega, e ele começa a comer com calma. Não quer voltar para o trabalho. Além de que, enquanto come, observa o grande amor de sua vida. Como ele queria ao menos saber o nome dela. Mas parece que seu bilhete sugerindo crachás, de dois meses atrás, não surtiu efeito.

13:10

Antônio já comeu um terço do seu almoço, talvez um pouco menos. A comida já está fria, a coca sem gás, mas ele não liga. Está tomando a sua dose diária de bom humor, para aguentar mais um dia, já esperando pelo almoço de amanhã.

Leva o copo à boca para mais um gole e, ao mesmo tempo, ela volta de uma mesa, passando ao seu lado. Ele a encara, ela olha de volta, e seus olhos se encontram. Antônio leva um susto, sua mão vacila e o copo cai, causando uma enchente de refrigerante em sua mesa. Junto com o copo parece que o mundo de Antônio também cai.

Então, talvez por milagre, ou pelas posições dos astros, algo além explicação acontece. A garçonete abre um sorriso e tira um pano de prato do bolso do avental. Puxa a cadeira da frente, abrindo espaço, e começa a limpar a mesa, rindo.

- Você tem que tomar cuidado com copos, eles são perigosos!

Antônio estava atônito, com a boca idiotamente aberta. Ela era tudo o que ele não era: linda, simpática e divertida. Devia ser inteligente também. Antônio não fala nada. E, com muito trabalho, dá uma risada sem graça. A garçonete ri dele, sem maldade, quase que carinhosamente.

- Prazer, meu nome é Michele. E o seu?

Antônio quase perde a fala. É o seu momento. E pensar que já estava perdendo as esperanças. Agora é só falar seu nome, tão fácil. Mas como um nome tão comum como Antônia poderia combinar com Michele ele não conseguia imaginar.

Ele abre a boca, mas sente sua voz falhar. Iria gaguejar, tinha certeza disso, sempre gagueja quando fala com mulheres. Fecha a boca e olha para Michele. Seus olhos piscam sem parar. Sua boca fica seca. Sua testa começa a suar e uma contração começa do lado direito da boca. Droga, seu tique nervoso queria se mostrar.

Enquanto isso Michele apenas olha para Antônio, esperando resposta. Mas ele apenas baixa a cabeça. Abre a carteira. Deixa uma nota sobre a mesa. Levanta-se, e vai embora sem falar nada.

15:42

Todos se assustam quando, sem motivo, Antônio começa a falar o próprio nome.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Então, o que acha do inferno?

Na verdade, Carlos já não achava tão ruim. Nos últimos tempos ele havia se acostumado com o cheiro de enxofre e o calor excessivo. E, diferente das pessoas que gritavam eternamente “Por quê? Por quê?”, ele já estava calmo e aceitava a situação. Sabia que merecia esse destino, com um certo orgulho até, e estava aprendendo a conviver com ele.

Aliás, quando parava de gritar durante as torturas, e a levar com indiferença, a maioria dos carrascos deixavam-no em paz. O que fazia sobrar tempo para passear pelas terras infernais. E, tirando a paisagem meio repetitiva e o clima quente, era algo prazeroso.

Andando, conhecia algumas pessoas, conversava com outras e chegava a gostar do lugar. Achava o fato de todos se entenderem em uma só língua, agradável. Afinal convivia com pessoas de todos os lugares do mundo, de todas as religiões e de todas as etnias. Conhecendo diferentes realidades e histórias, nenhuma com final feliz, é claro.

Chegava a gostar do seu novo mundo. Não como gostava do seu trabalho, da sua vida na terra e etc. Afinal, no inferno ele quem era mal tratado, e não ele quem maltratava. Mas achava que poderia fazer a sua eternidade um pouco mais interessante do que três sessões de tortura diárias com gritos de agonia.

Em suas conversas descobriu que o inferno era dividido, e que o seu era um dos mais simples. Férias de verão, como alguns torturadores chamavam. Carlos ficou feliz com a notícia por um tempo, pareceu que sua eternidade não seria de todo o ruim afinal. Mas depois se chateou. Tinha uma péssima reputação em vida. Era vil, cruel. Como havia acabado em um inferno leve? Se o vissem ali, fariam comentários, provavelmente ririam. Já até imaginava:

- Lembra do Carlos Fernandez?

- Lembro, que que tem ele?

- Tá no inferno dois!

- Sério?

- Uhum.

- Sabia, aquela pinta toda nunca me enganou.

- Pois é, quem diria? Logo ele, um homem tão malvado.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

1º de Abril

Sentado à beira de uma calçada, ele lembra de como tudo começou com algumas simples mentiras. Que uma mania infantil o levou para aquela situação.

Sentado, sozinho, sujo. Suas roupas rasgadas pelo uso sem trocar. Todos os seus pertences repousando em uma mochila velha ao seu lado. Aquilo era o seu mundo, aquela rua movimentada na frente, aquelas pessoas passando e aquele cheiro horrível. Que ele sabia ser dele.

Nesse 1º de Abril ele fica esperando, como em todos os outros, que as pessoas saíam de trás dos carros estacionados e de dentro das casas. Falando que é tudo mentira. Que os últimos 10 anos foram apenas brincadeira. E, mesmo sendo loucura, ele espera por isso, fielmente, todo ano.

Lembra-se da infância, da família e dos bons momentos. Tão distantes agora. Lembra de como brincava com a sua imaginação quando criança, e do quanto gostava disso. Tanto, que nunca parou.

Recorda também dos amigos se distanciando. Dos pais preocupados. E do “tio” que ele visitava duas vezes por semana para conversar, deitado em um sofá estranho.

Uma lágrima escorre pelo seu rosto, abrindo caminho pela sujeira. Quer chorar, da mesma forma que chorava na escola, no banheiro. Escondido das outras crianças, que dele riam. Ele ainda ouve as risadas, e vê os dedos apontando.

Agora, pelo menos, ele tem amigos de verdade. Eles são estranhos, e podem até não conversar com ele. Mas, de alguma forma, sente que eles dedicam a própria vida para ele. Sente-se especial.

Fica olhando o movimento, esperando as pessoas do seu passado finalmente falarem que era tudo brincadeira. Só não entende porque eles não vieram no 1º de Abril dos outros anos. Também não entende porque aquelas crianças do outro lado da rua o encaram. Devem achar ele louco. Aquelas três, carecas e com a pele levemente azulada.

Decide que ainda falta muito para o dia acabar. Que o jeito é ignorar as crianças, esperar e ensaiar a sua cara de surpresa.

domingo, 8 de março de 2009

Oscar

Oscar tinha orgulho do monte da areia que se erguia em sua frente. Sem dúvida ele tinha o melhor castelinho entre as crianças da praia. Isso se os meninos mais velhos não voltassem para chutar a sua obra outra vez.

Há algumas horas aquilo tudo não passava de areia plana. Levemente inclinada, talvez. Mas agora o seu castelo já tinha 3 torres, formando um triângulo equilátero que apontava para o mar. Em volta havia um fosso, e quando a maré vinha, a água escorria nas caneletas que a mandavam para longe.

O menino tinha orgulho de tudo aquilo. Levantou-se com o baldinho nas mãos. Admirou a sua construção de cima. Limpou a areia das pernas e ajeitou a sunga. Observou o interior do castelo e decidiu fazer um lago ali dentro, para a maré encher quando vier. “Fácil”.

Olhou a maré vir mais forte que o normal. A água entrou pelo fosso, e se não fosse a sua proteção com palitinhos de sorvete, o seu castelo tinha sido destruído. Sorriu mais uma vez. Os seus 12 picolés de limão haviam valido a pena.

Saiu correndo para achar outras crianças para ver o seu castelo. Chegou ao lado de três meninos que tentavam fazer um, e riu do monte de areia disforme deles. Perguntou se eles gostariam de ver um castelo de verdade e os levou até onde estava o seu.

Nessas horas você descobre muito sobre a fibra de uma pessoa, mesmo de uma criança. Muitas outras teriam chorado, mas não o pequeno Oscar, ao ver que a maré havia limpado o seu belo castelo triangular. Os três meninos riram, apontaram e foram embora.

Oscar soltou o seu baldinho e, calmamente, observou o que restou do seu trabalho. Viu que os palitos de sorvete não aguentaram o fluxo de água. Viu também que o fosso havia ficado mais raso por causa da areia que a maré sempre trazia.

Juntou os palitinhos dentro do balde, pegou a sua pá e foi atrás do sorveteiro. Porque não havia nada que mais 10 picolés e um Niemeyer trabalhando não dessem conta.

terça-feira, 3 de março de 2009

Atraso

Sem dúvidas, aquele era um péssimo dia para ele. Não que os outros fossem bons, mas aquele estava incrivelmente ruim. Quando se é guarda auxiliar de uma faculdade, aos 58 anos, a vida não parece tão agradável. Principalmente com a sua mulher gritando no seu ouvido e a sua filha grávida sem saber quem é o pai. Definitivamente: que dia horrível.

Era dia de matrícula na faculdade. Os calouros chegavam com as suas famílias. Documentos em mãos, caminhando de um lado para o outro. Conversando e sorrindo. E o velho nada podia fazer além de encarar toda aquela felicidade. Controlando a sua vontade de vomitar. “Que dia nojento”, pensou.

Tomou um tempo de folga e foi para fora. Acendeu um cigarro e se pôs a fumar. Viu mais uma família feliz subir as escadas e sentiu vontade de cometer um crime. Invejava toda a felicidade a sua volta. Soltou a ponta do cigarro no chão. Apagou-a com o pé direito e voltou para dentro.

No dia ele era o responsável pela entrada de um corredor, onde aconteciam as matrículas de alguns cursos. Era dia de lista de espera, o que tornava as pessoas ainda mais insuportavelmente felizes.

Chegou à sua porta e viu todos aqueles jovens esperando. Abriu as portas do corredor e deixou todos aqueles alunos sorridentes entrarem. Com os seus agradecimentos por ele abrir a porta, insuportáveis. Olhou para baixo, tentando não ficar ainda mais nervoso. Quando entrou o último aluno, ele encostou as portas. Apoiou as costas na parede e ficou fitando o nada.

Então chegou um último aluno. Subiu as escadas correndo e pediu para o guarda abrir as portas. Mas o velho apenas barrou a sua passagem. Olhou no relógio. Viu um atraso de 3 min. E um sorriso sádico apareceu em seus lábios.

Sinto muito”, falou. Deu de ombros e assistiu o ex-futuro calouro se afastar cabisbaixo. “Até que o dia não está tão ruim”, pensou ele, sem nem mesmo imaginar que estava salvando uma vida. Ou algo muito próximo disso.

P.S.: Essa é uma história real que eu mesmo inventei.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Free

Ele lembrará desse dia pelo resto da vida. Aos nove anos. Parado na frente de casa. Com uma bola embaixo do braço e limpando o nariz com a manga da camisa. Olhando o fim da rua. Vendo seu pai ficar cada vez mais distante.

Há quadras de distância o pai olha para trás. O menino ajeita os cabelos, encabulado. Não entende porque se sente daquele jeito. Seu pai está apenas indo comprar cigarro. Mas alguma coisa no seu olhar, na sua fala. Alguma coisa fez com que tudo aquilo fosse estranho.

Talvez tenha sido pela briga que seus pais tiveram no dia anterior. Talvez seja porque sua mãe tenha chorado o dia inteiro, trancada no quarto. O que quer que seja, algo estava errado.

Seu pai estava diferente. Saiu de casa diferente, andou até ele e o abraçou de forma diferente. Passou a mão bagunçando o seu cabelo, e sorriu um sorriso desconhecido. Alguma coisa naquele momento estava errada. Fora do lugar.

Agora ele já não consegue ver o próprio pai, tão longe que está. E ele fica ali, parado, pensando. Repassando toda a sua manhã, imaginando o que havia de tão estranho. O que havia o deixado daquele jeito.

A boca do menino se abre. Ele solta a bola e corre atrás do pai. Lágrimas enchem os seus olhos. Tremores percorrem os seus ossos. A dúvida já não existe mais.

Seu pai está indo embora, para nunca mais voltar. Ele tem certeza disso. Não entende como pode esquecer algo tão óbvio. Seu pai não fuma.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Ruína Filarmônica

Finalmente, meses de ensaio seriam testados nessa noite, e tudo seria perfeito. Se desse certo, ele conquistaria a cidade, o país, e depois: o mundo. Seria reconhecido como o grande maestro que era: novo e talentoso.

Ele pensa isso enquanto sobe ao palco. Cumprimenta os músicos, e faz uma saudação para a platéia. Suas pernas ameaçam tremer e sua testa começa a suar. Casa cheia.

Dá as costas à platéia e olha para os seus músicos. Respira fundo, pisca os olhos com força e começa a fazer o que sabe de melhor: o seu trabalho. A primeira música começa, soa perfeita, nenhuma variação, nada além da mais bela sinfonia.

O jovem maestro ouve os aplausos da platéia, vira-se, e faz uma reverência. Ele mal pode conter tamanha felicidade. Volta-se para o palco e começa a segunda música. Olha cada um dos seus músicos nos olhos, e ali vê profissionais.

A violinista loira, sempre insegura, parece forte e decidida. Os tenores, que não gostam uns dos outros, ressoam como uma só voz. Até o gordo do tambor está fazendo tudo certo, mesmo que, duas semanas atrás, ele tenha flagrado o maestro com a sua namorada. Mas, naquela apresentação, mostrou que eram águas passadas.

A segunda música se encerra sem nenhum erro. Ele olha a platéia, agradece e, sem conseguir tirar o sorriso bobo do rosto, volta-se para os seus músicos. Então começa a terceira música, a sua preferida.

A música soa sem nenhum erro. E ele percorre novamente os seus músicos. O contra-baixo está perfeito, como tudo. Mas, ao passar os seus olhos pelo gordo do tambor, ele para. E então, repara que ele também o olha nos olhos. Aquele homem de camisa apertada e cabelo bagunçado sorri. E o jovem maestro treme.

Não há tambor nessa música. Mas o gordo mexe as mãos. Estica o mindinho da direita. E começa a levantar a mão. O maestro apenas assiste, impedido de qualquer reação. Repara em como aquele mindinho tem uma unha maleficamente comprida. Repara também como os dentes do músico se mostram quando ele escancara ainda mais o sorriso. E, para o horror do jovem maestro, o gordo do tambor limpa o vão dos dentes com a unha do mindinho. Mexendo para cima e para baixo, vagarosamente. E depois, descendo o dedo para limpar na camisa.

É o fim, o maestro sabe disso. Ele falhou. Sabe que a platéia deve ter visto e começa a imaginá-los comentando. E, assim, o maestro perde as forças. Baixa a cabeça. A vareta para de se mexer, e toda a orquestra desanda. Os outros músicos se surpreendem com a súbita tristeza do, sempre animado, maestro na sua música preferida. Também se surpreendem quando o gordo, calado a semanas, começa a gargalhar alto.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Feliz 2009

Faltam dois minutos para a meia noite e, enquanto os pais bebem com o resto da família, uma menina de 16 anos olha ansiosa para o relógio em cima da lareira. O fogo crepita enquanto ela não ousa desviar o olhar dos ponteiros. Aperta um pedaço de papel na mão direita e passa os dedos pela taça na esquerda.

Seu pai entra na sala, levemente bêbado, faz alguma graça, da qual ela ri falsamente e sem prestar atenção. O pai sai, resmungando alguma coisa. Ela ouve a mãe a chamando para o jardim, junto de toda a família, mas esse convite não recebe resposta.

Apenas 1 minuto para a meia noite.

Ela ouve os risos que vem de fora, mas prefere ficar ali, diante da lareira, para fazer tudo certo dessa vez. Relembra mentalmente a sua última hora, pensando, pela décima vez, se não havia esquecido nada. Vestia apenas roupa branca, anotou os seus sete pedidos em um papel e colocou as doze uvas em uma taça que encheu de champanhe. Ouve a chamarem de novo, mas nem mesmo o seu olhar se move.

30 segundos.

Um primo mais novo vem à porta, faz alguma piada chamando-a de esquisita, e vai embora. Ela apenas sorri. “Inocente”, pensa. Ela já havia errado duas vezes esse ritual, e passara os últimos dois anos vivendo um inferno por causa disso.

10 segundos.

Lá fora toda a família começa a fazer a contagem regressiva, enquanto ela apenas olha para o fino ponteiro passando pelos segundos. “Estão atrasados”, constata ao ver o ponteiro e acompanhar a contagem de fora. Aperta ainda mais o papel na sua mão, sentindo ele rasgar. Assusta-se, e fica imaginando em cima de qual pedido o rasgo havia sido feito, mas já era tarde para ver.

5 segundos.

Ela fecha os olhos e conta os últimos segundos mentalmente. Eles se passam e ela joga o papel no fogo. Bebe a taça de champanhe com um gole e come todas as uvas, inteiras. Quando acaba, ouve a família, atrasada, comemorando o novo ano. Abre os olhos e, olhando para baixo, vê uma das uvas caída no chão.

Seu pai entra, rindo, desejando feliz ano novo. Mas encontra a sala vazia, enquanto a sua filha corre para o próprio quarto, gritando que só saí de lá em 2010.