quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A Tela Branca e Azul

Raramente se viam e já não se falavam mais pelo telefone. Não que fossem separados por uma grande distancia, moravam na mesma cidade, relativamente perto.

Eram separados por uma cadeia de acasos, com desculpas nascidas da própria rotina. Pelo menos era isso que ela falava, e era nisso que ele acreditava.

No tempo que ficaram sem se ver, o que ele sentia por ela foi pouco a pouco transferido para uma tela no canto do seu monitor. Uma tela branca e azul, pela qual conversavam.

Passou por tardes nubladas, noites demoradas e até sábados de sol com os olhos abertos apenas em função daquela tela. Até mesmo as mensagens sem sentido eram responsáveis pelo sentido do seu dia.

Aos poucos, o que mais gostava nela foi substituído. O brilho dos cabelos deu lugar à luz do monitor. A cor dos olhos cedeu aos pixels coloridos. E até mesmo os suspiros, os quais tanto gostava, viraram consoantes sem significado. O que sentia foi diminuindo pouco a pouco, até não ser maior que a tela.

Se relacionou tanto com aquele código binário que, ao ver a pessoa por trás da tela branca e azul, já não sentia a mesma coisa. Sua voz não o encantava, seus olhos não tinham o mesmo brilho e a sua presença não cativava.

Conversaram casualmente, estranhamente. Evitavam os olhos um do outro. Ele, procurando o encanto que já não pertencia aquele mundo. Ela, não se sabe.

Ele sabia que, depois desse encontro, a tela no canto do seu monitor havia perdido o brilho, a graça. A verdade por trás da tela branca e azul havia matado a tela branca e azul.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Dudu

Pobre Dudu, sempre foi levado a idealizar. Não era de propósito. Mal sabia que era algo ruim, principalmente naquela idade. No próprio parque de diversões, ao ver a montanha russa, já se imaginou nela, nos loops, nas voltas, em tudo. Entrou na fila animado, deveria demorar, mas quem ligava?

Quanto mais se aproximava do carrinho, mais rápido seu coração batia. Era um amor infantil entre Dudu e a montanha. Na metade do caminho seu medo já havia sido vencido, e quando estava para subir, não se via em outra coisa.

- Não pode entrar.

Foi a única coisa que o homem de peitoral estufado e olhos maldosos falou para Dudu. Era a altura? Era a idade? Dudu nunca iria saber.

Só sabia de uma coisa. Agora, tinha ainda mais medo de montanha russa.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Barba por fazer

A cada três ou quatro manhãs, dependendo da hora em que fiz a barba da ultima vez, tenho uma agradável visão ao acordar: a barba por fazer perfeita.

Não que ela seja perfeita em relação a todas as outras barbas do mundo, claro que não. Mas, para uma barba dura e cheia como a minha, dura de crescer e cheia de falha como diz meu pai, esse é o seu melhor estado.

Nesse dia, até o banho pela manhã é mais cuidadoso. Com direito a xampu no centímetro de pelo facial e ser enxugada com uma toalha branca, só para ver o algodão preso nos fios de barba contrastando com a pele.

Se o bigode estiver desproporcional, o que normalmente acontece, já tiro com a gilete. Confesso que, dessa forma, evito piadas envolvendo indianos, sorveteiros e “aquele cara engraçado daquele filme lá”, que, obviamente, também é indiano.

Visto minhas roupas e, depois de alguns minutos admirando a barba por fazer perfeita, pego a mochila e saio de casa.

A felicidade desse dia é grande, porém passageira. Dura o tempo de entrar no ônibus e encontrar alguém com uma barba de verdade. O que faz com que eu fique o dia todo querendo voltar para casa, pegar uma lamina de barbear e tirar essa porcaria da minha cara.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

20 Anos Parado

Ele não saberia dizer quando a ausência de movimento havia chegado. Ou se era ele que teria chegado até ela.

Imitando a movimentação na estrada, os impulsos de seus neurônios pareciam seguir um ritmo lento, demorando a virar cada esquina de pensamento e parando nos semáforos de atenção.

Quando conseguia velocidade em alguma linha de raciocínio, logo era tirado dela. Às vezes eram os amigos ao lado, no banco de trás. Em outras, era o motorista ou a moça sentada no banco do passageiro.

Perdido entre os carros do congestionamento, havia outro, verde, também cheio de conhecidos. Todos iam à mesma festa, que parecia ter mudado para dentro dos próprios carros. Onde todos eram levados mais pela embriaguez do que pela estrada.

Iam sem pressa, como se a cada dois metros houvesse alguma atração turística para se apreciar. Mas nada mudava ao passar, até mesmo os carros das outras faixas pareciam ser sempre os mesmos, andando todos na mesma velocidade. Inclusive, um ônibus que seguia o mesmo ritmo dos carros, com muitas paradas entre cada parada.

Enquanto os motoristas apuravam os sentidos para mudar a marcha, alternando os pés entre o acelerador, a embreagem e o freio, os passageiros alternavam os copos de mãos e as conversas de assuntos.

Igual aos carros, que andavam cada vez menos, os pensamentos dele também pareciam frear. E foi com essa calmaria, em meio a um caos de buzinas e gritos, que a meia noite passou. E ele ainda não havia pensado nisso.

Não havia pensado em vinte anos de história que acabava de completar. Não tinha conseguido filosofar sobre a vida, como fazia todo ano. Sobre onde estava e onde queria chegar. Isso como pessoa, claro, e não fisicamente.

Meia noite e um. Todas as perguntas que o atormentavam anualmente estavam fora de sua cabeça. Lá, havia apenas espaço para conversas, risadas e algumas buzinas. Uma delas, inclusive, vindo do carro em que estava, para comemorar o seu aniversário. Um dos amigos no banco de trás havia lembrado.

Foi assim que encarou os seus vinte anos: parado.

Sabia que era melhor assim, poupando-se das perguntas que vinham acelerar o ritmo dos seus neurônios todos os anos. Neurônios estes, alias, que preferiam que ele continuasse parado. Mais tarde, mal conseguia andar, só não sabia se era efeito do álcool ou do congestionamento. Preferia não saber.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Um dia, tudo cai

Foi por esses dias, não sei qual ao certo, que caiu a minha ficha. Finalmente entendi que não sei muito sobre mim mesmo. Aliás, nunca tive o costume de falar que caiu a ficha, principalmente porque faz tempo que os telefones usam cartão. Não sei porque usei esse termo, especialmente logo em um texto auto-biográfico.

Meus próprios genes, por exemplo, não conheço. Na pressa de criar alguém novo, jogaram espanhóis, portugueses, alemães, afro-descentes e indígenas em uma espécie de liquidificador genético. Ao servir, acabei com cara de indiano, mesmo que não houvesse nenhum na receita original. Pelo menos nenhum que eu saiba.

Uma das minhas poucas certezas, é a de que possuo uma memória horrível. Parece até que já foi usada. Isso contribui ainda mais para o pouco que sei sobre mim, já que tenho dificuldades de refazer minha infância e adolescência até onde estou.

E, sobre onde estou, também pouco sei. Tanto fisicamente como sobre o momento, a situação em que me encontro. Sei mais ou menos o nome da rua, ou talvez esse seja o nome da rua de baixo. Quanto ao momento, pode ser bom, novo. Ou apenas mais um que tente parecer assim. Não sei.

Escrevendo, vejo fios pretos contrastando com a palma da minha mão. Meus cabelos caem, mesmo tendo pouco mais de vinte anos. E isso não consigo esquecer, já que meu espelho me relembra todas as manhãs.

Um dia, tudo cai. Inclusive a minha ficha, a qual eu já deva ter comentado. Não sei.

domingo, 15 de maio de 2011

Vida Parada

Ele já estava cansado do que a vida havia lhe reservado. Cansado de correr atrás e não conseguir, ou de ficar parado e nada acontecer. Parecia que o mundo girava contra ele, que o sol se erguia sempre da mesma forma apenas para mostrar que mais um dia nascia e que nada seria diferente.

Dias, meses e anos se passaram. Nada. Cresceu, amadureceu, trabalhou e, mesmo assim, nada. Achava incrível como tão pouca coisa poderia acontecer com uma pessoa só. Rezava pedindo até por alguma tragédia, um terremoto, um furacão ou uma doença. Qualquer coisa que fizesse a sua rotina sair da rotina.

Tentou os esportes, sempre empatava. Tentou a arte, a inspiração não vinha. Tentou viajar, foi e voltou. Nada de diferente, nada.

Começou a apelar. Viajou de avião com um estilete no bolso, a policia não o parou. Entrou na igreja universal vestido de diabo, o ignoraram. Falou que ia largar a mulher, ela o ajudou a fazer as malas. Pediu para voltar, ela o aceitou.
Desistiu de tentar e aceitou a sua vida sem graça.

Amanhã ele viaja para visitar a irmã.

Amanhã o avião dele irá cair.

Enfim, amanhã será um bom dia.

sábado, 7 de maio de 2011

Amor de Infância

Todo mundo se apaixona com 6 anos, mas com ele foi diferente. Ele não gostou dela apenas pela beleza, ou porque era boa no esconde-esconde. Foi mais do que isso.

Ele não sabia dizer o porque desse sentimento. Se era o charme na dificuldade dela em escrever o próprio nome. Ou o contato de suas mãos quando ela pedia a sua ajuda para abrir a garrafinha da lancheira.

Foram quase dois anos assim. Até que um dia ela não estava lá. E não voltou a aparecer. Em uma época em que Orkut e Facebook não existiam, ele não conseguiu encontrá-la.

A vida seguiu, e ele foi no embalo. Mas nunca a esqueceu, mesmo depois de cinco, dez, quinze anos.

Duas décadas se passaram até se reencontrarem. Se reconheceram de longe, mesmo estando tão diferentes, e conversaram.

Ela, uma bailarina de balé clássico. Ele, um engenheiro já formado e com um bom trabalho. Enquanto ela falava, ele sentia o coração grande demais para o próprio peito. Flertava com as possibilidades desse reencontro. Afinal, ambos eram interessantes e estavam solteiros. Chamou-a para jantar naquela mesma noite, ela aceitou.

Já após o jantar, voltando sozinho para casa, ele sabia que não ligaria para ela. Toda a magia tinha desaparecido, mas ele não sabia explicar o porque.

Talvez fosse a independência com que ela abriu a garrafa de vinho, ou a facilidade com que escreveu o próprio nome e o telefone no guardanapo. E, hoje em dia, ela deve ser horrível no esconde-esconde.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Campo Minado

Pouco depois do fim da chuva, o sol já começou a surgir. Como um soldado entrincheirado, eu esperava protegido pela marquise de uma loja. No céu, o vento forçava o exército de nuvens a se retirar.

Olhando em volta, avistei outros sobreviventes saindo de seus abrigos. Alguns totalmente secos, assim como eu. Outros com manchas molhadas nas roupas, que causavam calafrios ao encostar no corpo.

Todos pareciam abatidos, mas felizes. Como se a chuva fosse um mal passado, vencido. Eu estava entre esses ingênuos, sem imaginar o plano que havia sido posto em prática.

Acontece que uma parte da água do ataque não escoou pelos bueiros, como esperado. Não estou falando das poças, ou das calhas ainda molhadas. Estou falando das minas urbanas.
Elas são formadas pela água que escorre para debaixo das pedras soltas nas calçadas. Lá, em conjunto com a terra, formam uma lama marrom, fétida e traiçoeira, que fica por lá, te esperando.

Camufladas entre o calçamento, a única forma de descobrir uma mina é pisando nela. Exatamente o que fiz nesse dia.

Ao pisar em uma pedra quadrada, daquelas grandes e lisas, senti o mecanismo acionar. Percebi com horror a lama que subia pelos vãos da calçada, cercando a minha perna e se agarrando a minha calça.

Levado pelo susto, xinguei em voz alta. As pessoas em volta me olharam, vendo alguém derrotado, com a perna suja até o joelho.

Um menino veio em meu socorro, mas a mãe o segurou. Todos me olhavam com solidariedade, cúmplices na minha dor, mas não podiam fazer nada. Afinal, essa é a estratégia das minas: ferir alguém para atingir aqueles que forem em seu auxílio.

Espero que não cometa o mesmo erro que eu. Que não tenha que voltar para casa aturdido, humilhado e sem ter coragem de tirar os olhos do chão.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Réveillon

O ano novo se aproximava do litoral enquanto um homem esperava atrás de sua mesa de escritório, bebendo seu café e fumando seu cigarro. Suas únicas companhia eram uma calculadora, uma pilha de papéis, uma caneta e um estranho instrumento.

Tomou alguns goles de café e se preparou para o trabalho que teria. Não se importava de trabalhar na virada, o problema era a quantidade. Faz isso apenas uma vez ao ano, mas tem um pavor pessoal da tarefa.

Olhou no relógio e decidiu que tinha tempo. Levantou e andou pelo velho escritório, mal iluminado e com tábuas rangendo ao passar. Parou ao lado da janela e olhou a noite enquanto tragava seu cigarro.

Foi interrompido pela agulha do instrumento, que começou a riscar uma longa folha de papel, como uma espécie de medidor de tremores. Ele suspirou e voltou para a mesa.

Mesmo sem ser meia noite, pelo visto, alguns já haviam começado as comemorações. Pegou a calculadora e começou a fazer contas e tomar notas em suas folhas.

Mesmo que sua chefe falasse para se atualizar, arranjar um computador ou um smart phone, ele preferia a calculadora e o papel. Dizia confiar mais na sua própria habilidade do que na tecnologia de outra pessoa.

Faltavam 5 minutos para meia noite, e o instrumento já riscava constantemente. O homem escrevia números e nomes com uma velocidade incrível com a mão direita, enquanto a esquerda fazia contas na calculadora.

Conseguiu liberar a esquerda para um rápido gole de café, e voltou ao trabalho. Lendo gráficos, analisando dados e anotando resultados.

Com apenas 2 minutos para a meia noite, a longa folha do instrumento já se amontoava no chão, aos pés da mesa. Ele havia feito algumas marcas nela, com trechos duvidosos, que consultaria depois. Pelo visto, seu pós-réveillon também seria trabalhoso.

Olhou para o relógio na parede, e imaginou as pessoas fazendo a contagem regressiva para a verdadeira virada. Faltando 10 segundos deu um rápido suspiro, e com 5 segundos a máquina já rabiscava metros de folha por minuto. Abaixou a cabeça, e continuou fazendo contas e tomando notas com uma velocidade extraordinária.

Pensou que, se alguém o visse naquela hora, o tomaria como um ser mítico, um contador do sobrenatural. Imaginou se algum dia contariam alguma lenda sobre ele, se acenderiam vela ou rezariam para receber ajuda em algum complicado problema de matemática. Sorriu com o pensamento.

E foi assim que, pela primeira vez, o Contador de Iemanjá – responsável por anotar o numero de ondas que cada um pula na virada – entrou em um ano com um sorriso no rosto. Nada muito grande. Mas, ainda assim, um sorriso.

Feliz 2011.