quinta-feira, 19 de maio de 2011

Um dia, tudo cai

Foi por esses dias, não sei qual ao certo, que caiu a minha ficha. Finalmente entendi que não sei muito sobre mim mesmo. Aliás, nunca tive o costume de falar que caiu a ficha, principalmente porque faz tempo que os telefones usam cartão. Não sei porque usei esse termo, especialmente logo em um texto auto-biográfico.

Meus próprios genes, por exemplo, não conheço. Na pressa de criar alguém novo, jogaram espanhóis, portugueses, alemães, afro-descentes e indígenas em uma espécie de liquidificador genético. Ao servir, acabei com cara de indiano, mesmo que não houvesse nenhum na receita original. Pelo menos nenhum que eu saiba.

Uma das minhas poucas certezas, é a de que possuo uma memória horrível. Parece até que já foi usada. Isso contribui ainda mais para o pouco que sei sobre mim, já que tenho dificuldades de refazer minha infância e adolescência até onde estou.

E, sobre onde estou, também pouco sei. Tanto fisicamente como sobre o momento, a situação em que me encontro. Sei mais ou menos o nome da rua, ou talvez esse seja o nome da rua de baixo. Quanto ao momento, pode ser bom, novo. Ou apenas mais um que tente parecer assim. Não sei.

Escrevendo, vejo fios pretos contrastando com a palma da minha mão. Meus cabelos caem, mesmo tendo pouco mais de vinte anos. E isso não consigo esquecer, já que meu espelho me relembra todas as manhãs.

Um dia, tudo cai. Inclusive a minha ficha, a qual eu já deva ter comentado. Não sei.

domingo, 15 de maio de 2011

Vida Parada

Ele já estava cansado do que a vida havia lhe reservado. Cansado de correr atrás e não conseguir, ou de ficar parado e nada acontecer. Parecia que o mundo girava contra ele, que o sol se erguia sempre da mesma forma apenas para mostrar que mais um dia nascia e que nada seria diferente.

Dias, meses e anos se passaram. Nada. Cresceu, amadureceu, trabalhou e, mesmo assim, nada. Achava incrível como tão pouca coisa poderia acontecer com uma pessoa só. Rezava pedindo até por alguma tragédia, um terremoto, um furacão ou uma doença. Qualquer coisa que fizesse a sua rotina sair da rotina.

Tentou os esportes, sempre empatava. Tentou a arte, a inspiração não vinha. Tentou viajar, foi e voltou. Nada de diferente, nada.

Começou a apelar. Viajou de avião com um estilete no bolso, a policia não o parou. Entrou na igreja universal vestido de diabo, o ignoraram. Falou que ia largar a mulher, ela o ajudou a fazer as malas. Pediu para voltar, ela o aceitou.
Desistiu de tentar e aceitou a sua vida sem graça.

Amanhã ele viaja para visitar a irmã.

Amanhã o avião dele irá cair.

Enfim, amanhã será um bom dia.

sábado, 7 de maio de 2011

Amor de Infância

Todo mundo se apaixona com 6 anos, mas com ele foi diferente. Ele não gostou dela apenas pela beleza, ou porque era boa no esconde-esconde. Foi mais do que isso.

Ele não sabia dizer o porque desse sentimento. Se era o charme na dificuldade dela em escrever o próprio nome. Ou o contato de suas mãos quando ela pedia a sua ajuda para abrir a garrafinha da lancheira.

Foram quase dois anos assim. Até que um dia ela não estava lá. E não voltou a aparecer. Em uma época em que Orkut e Facebook não existiam, ele não conseguiu encontrá-la.

A vida seguiu, e ele foi no embalo. Mas nunca a esqueceu, mesmo depois de cinco, dez, quinze anos.

Duas décadas se passaram até se reencontrarem. Se reconheceram de longe, mesmo estando tão diferentes, e conversaram.

Ela, uma bailarina de balé clássico. Ele, um engenheiro já formado e com um bom trabalho. Enquanto ela falava, ele sentia o coração grande demais para o próprio peito. Flertava com as possibilidades desse reencontro. Afinal, ambos eram interessantes e estavam solteiros. Chamou-a para jantar naquela mesma noite, ela aceitou.

Já após o jantar, voltando sozinho para casa, ele sabia que não ligaria para ela. Toda a magia tinha desaparecido, mas ele não sabia explicar o porque.

Talvez fosse a independência com que ela abriu a garrafa de vinho, ou a facilidade com que escreveu o próprio nome e o telefone no guardanapo. E, hoje em dia, ela deve ser horrível no esconde-esconde.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Campo Minado

Pouco depois do fim da chuva, o sol já começou a surgir. Como um soldado entrincheirado, eu esperava protegido pela marquise de uma loja. No céu, o vento forçava o exército de nuvens a se retirar.

Olhando em volta, avistei outros sobreviventes saindo de seus abrigos. Alguns totalmente secos, assim como eu. Outros com manchas molhadas nas roupas, que causavam calafrios ao encostar no corpo.

Todos pareciam abatidos, mas felizes. Como se a chuva fosse um mal passado, vencido. Eu estava entre esses ingênuos, sem imaginar o plano que havia sido posto em prática.

Acontece que uma parte da água do ataque não escoou pelos bueiros, como esperado. Não estou falando das poças, ou das calhas ainda molhadas. Estou falando das minas urbanas.
Elas são formadas pela água que escorre para debaixo das pedras soltas nas calçadas. Lá, em conjunto com a terra, formam uma lama marrom, fétida e traiçoeira, que fica por lá, te esperando.

Camufladas entre o calçamento, a única forma de descobrir uma mina é pisando nela. Exatamente o que fiz nesse dia.

Ao pisar em uma pedra quadrada, daquelas grandes e lisas, senti o mecanismo acionar. Percebi com horror a lama que subia pelos vãos da calçada, cercando a minha perna e se agarrando a minha calça.

Levado pelo susto, xinguei em voz alta. As pessoas em volta me olharam, vendo alguém derrotado, com a perna suja até o joelho.

Um menino veio em meu socorro, mas a mãe o segurou. Todos me olhavam com solidariedade, cúmplices na minha dor, mas não podiam fazer nada. Afinal, essa é a estratégia das minas: ferir alguém para atingir aqueles que forem em seu auxílio.

Espero que não cometa o mesmo erro que eu. Que não tenha que voltar para casa aturdido, humilhado e sem ter coragem de tirar os olhos do chão.