sexta-feira, 29 de maio de 2009

Então, o que acha do inferno? [2]

Carlos, por acidente, encontrou sua mulher no inferno. Surpreso, a observou de longe durante um tempo. Quem diria, a Renatinha no inferno. Logo ela, que sempre fazia tudo certo: organizada, bem humorada, confiável e bondosa com tudo e com todos. Se havia alguém que ele nunca mais imaginou ver, era ela. Pensou no quanto ela devia ter mudado depois de sua morte, pobrezinha.

Carlos acenou de longe, ela não viu. Ela estava olhando para baixo, com o olhar perdido, e não viu quando ele se aproximou.

- Oi!
- Oi, nossa! Carlos?
- Eu mesmo. Quanto tempo, não?
- É, da última vez você tava…
- Morto?
- É!
- Pois é. Nunca imaginei encontrar logo você por aqui.
- Uhum – ela sorriu sem graça.
- Qual o motivo que trouxe você aqui?
- Todos os motivos?
- Não, só o principal.
- Adultério.
- Nossa. Então você casou depois da minha morte?
- …

E, no silêncio dela, Carlos descobriu um pouco mais sobre a dor do inferno.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Acidente

Perto da meia noite, durante a chuva, um carro derrapou por causa dos pneus carecas. O motorista ficou sozinho no meio da estrada. Sofreu um ferimento grave pela falta do cinto de segurança que, a tempos, havia quebrado.

Sentindo a morte perto ele resolveu usar seu último esforço e se declarar para o grande amor da sua vida. Pegou o celular e com dificuldade discou o número. Do outro lado da linha:

- Você não possui créditos para realizar chamadas.

E, pela primeira e última vez, o motorista se arrependeu de ser tão mão de vaca.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Amor

O coração dela bate acelerado. As mãos suam e os olhos não piscam.
- Ana Lúcia?
- Sim?
- Todo este tiempo que estamos juntos, tem sido o mais feliz da minha vida.
- Uhum…
- E yo gostaria que durasse más, mucho más.
- Oh, Henrico – os olhos dela se enchem de lágrimas ao ver a caixinha preta.
- Você aceita ser minha mujer? Na alegria? Na tristeza? Na saúde e na doença? Para siempre? Para todo siempre?
- Aceito! Claro que aceito.

Eles se abraçam e se beijam.
Ela pensando no casamento.
Ele no green card.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Horário de Almoço

11:50

Faltam 10 minutos para seu horário de almoço, e Antônio já começa a errar pequenas coisas no trabalho. Na realidade, já faz meia hora que perdeu o foco e só consegue pensar no almoço.

Não porque esteja com fome, muito menos por estar cansado. Mas por um motivo de um metro e setenta, cabelos castanhos, pele clara e um par de olhos castanhos que, para os outros, não tem qualquer graça. Mas para Antônio, a... para Antônio aquele olhar é o paraiso.

12:00

Chega de trabalho para Antônio. Levanta-se, veste o casaco e deixa para trás aquela colméia de cubiculos.

Um sorriso aparece em seu rosto, agora começou a melhor hora do seu dia. A que faz o dia valer a pena, quando anda vinte quadras a mais e não sente qualquer diferença. Quando gasta o dobro do seu vale para vê-la. Quando faz tudo para isso.

No caminho passa frente a uma loja de flores. Pensa se deve comprar um buquê. Afinal de contas, já fazem quatro meses. Não que namorem a quatro meses, não que se conheçam a quatro meses, não que ela sequer saiba que o nome de Antônio é Antônio. Mas, na cabeça dele, é um aniversário.

12:30

Antônio senta-se a mesa e espera ser atendido. Descartou a idéia do buquê no caminho, ficou com medo de assustá-la. Algo incrivelmente esperto, principalmente vindo de Antônio.

O alvo do seu afeto sai da cozinha, com seu usual uniforme amarelo claro e um avental vermelho. Os cabelos castanhos enrolados em um coque, e uma redinha em volta. O coração de Antônio bate mais forte.

Ela anda em sua direção, Antônio sorri e ensaia mentalmente como o pedido do cardápio. Mas ela passa reto e outra garçonete toma seu lugar. Um pouco mais baixa e mais velha, com a metade da beleza e o dobro do peso. Ela para ao lado de Antônio com uma caneta e um bloquinho em mãos.

Antônio diz que vai esperar um pouco. Mas a garçonete, cuja respiração lembra um rinoceronte com asma, não sai do seu lado. Ele desiste, “não é hoje”, pensa. Pede o prato do dia e uma coca-cola.

12:45

Seu almoço chega, e ele começa a comer com calma. Não quer voltar para o trabalho. Além de que, enquanto come, observa o grande amor de sua vida. Como ele queria ao menos saber o nome dela. Mas parece que seu bilhete sugerindo crachás, de dois meses atrás, não surtiu efeito.

13:10

Antônio já comeu um terço do seu almoço, talvez um pouco menos. A comida já está fria, a coca sem gás, mas ele não liga. Está tomando a sua dose diária de bom humor, para aguentar mais um dia, já esperando pelo almoço de amanhã.

Leva o copo à boca para mais um gole e, ao mesmo tempo, ela volta de uma mesa, passando ao seu lado. Ele a encara, ela olha de volta, e seus olhos se encontram. Antônio leva um susto, sua mão vacila e o copo cai, causando uma enchente de refrigerante em sua mesa. Junto com o copo parece que o mundo de Antônio também cai.

Então, talvez por milagre, ou pelas posições dos astros, algo além explicação acontece. A garçonete abre um sorriso e tira um pano de prato do bolso do avental. Puxa a cadeira da frente, abrindo espaço, e começa a limpar a mesa, rindo.

- Você tem que tomar cuidado com copos, eles são perigosos!

Antônio estava atônito, com a boca idiotamente aberta. Ela era tudo o que ele não era: linda, simpática e divertida. Devia ser inteligente também. Antônio não fala nada. E, com muito trabalho, dá uma risada sem graça. A garçonete ri dele, sem maldade, quase que carinhosamente.

- Prazer, meu nome é Michele. E o seu?

Antônio quase perde a fala. É o seu momento. E pensar que já estava perdendo as esperanças. Agora é só falar seu nome, tão fácil. Mas como um nome tão comum como Antônia poderia combinar com Michele ele não conseguia imaginar.

Ele abre a boca, mas sente sua voz falhar. Iria gaguejar, tinha certeza disso, sempre gagueja quando fala com mulheres. Fecha a boca e olha para Michele. Seus olhos piscam sem parar. Sua boca fica seca. Sua testa começa a suar e uma contração começa do lado direito da boca. Droga, seu tique nervoso queria se mostrar.

Enquanto isso Michele apenas olha para Antônio, esperando resposta. Mas ele apenas baixa a cabeça. Abre a carteira. Deixa uma nota sobre a mesa. Levanta-se, e vai embora sem falar nada.

15:42

Todos se assustam quando, sem motivo, Antônio começa a falar o próprio nome.