segunda-feira, 27 de abril de 2009

Então, o que acha do inferno?

Na verdade, Carlos já não achava tão ruim. Nos últimos tempos ele havia se acostumado com o cheiro de enxofre e o calor excessivo. E, diferente das pessoas que gritavam eternamente “Por quê? Por quê?”, ele já estava calmo e aceitava a situação. Sabia que merecia esse destino, com um certo orgulho até, e estava aprendendo a conviver com ele.

Aliás, quando parava de gritar durante as torturas, e a levar com indiferença, a maioria dos carrascos deixavam-no em paz. O que fazia sobrar tempo para passear pelas terras infernais. E, tirando a paisagem meio repetitiva e o clima quente, era algo prazeroso.

Andando, conhecia algumas pessoas, conversava com outras e chegava a gostar do lugar. Achava o fato de todos se entenderem em uma só língua, agradável. Afinal convivia com pessoas de todos os lugares do mundo, de todas as religiões e de todas as etnias. Conhecendo diferentes realidades e histórias, nenhuma com final feliz, é claro.

Chegava a gostar do seu novo mundo. Não como gostava do seu trabalho, da sua vida na terra e etc. Afinal, no inferno ele quem era mal tratado, e não ele quem maltratava. Mas achava que poderia fazer a sua eternidade um pouco mais interessante do que três sessões de tortura diárias com gritos de agonia.

Em suas conversas descobriu que o inferno era dividido, e que o seu era um dos mais simples. Férias de verão, como alguns torturadores chamavam. Carlos ficou feliz com a notícia por um tempo, pareceu que sua eternidade não seria de todo o ruim afinal. Mas depois se chateou. Tinha uma péssima reputação em vida. Era vil, cruel. Como havia acabado em um inferno leve? Se o vissem ali, fariam comentários, provavelmente ririam. Já até imaginava:

- Lembra do Carlos Fernandez?

- Lembro, que que tem ele?

- Tá no inferno dois!

- Sério?

- Uhum.

- Sabia, aquela pinta toda nunca me enganou.

- Pois é, quem diria? Logo ele, um homem tão malvado.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

1º de Abril

Sentado à beira de uma calçada, ele lembra de como tudo começou com algumas simples mentiras. Que uma mania infantil o levou para aquela situação.

Sentado, sozinho, sujo. Suas roupas rasgadas pelo uso sem trocar. Todos os seus pertences repousando em uma mochila velha ao seu lado. Aquilo era o seu mundo, aquela rua movimentada na frente, aquelas pessoas passando e aquele cheiro horrível. Que ele sabia ser dele.

Nesse 1º de Abril ele fica esperando, como em todos os outros, que as pessoas saíam de trás dos carros estacionados e de dentro das casas. Falando que é tudo mentira. Que os últimos 10 anos foram apenas brincadeira. E, mesmo sendo loucura, ele espera por isso, fielmente, todo ano.

Lembra-se da infância, da família e dos bons momentos. Tão distantes agora. Lembra de como brincava com a sua imaginação quando criança, e do quanto gostava disso. Tanto, que nunca parou.

Recorda também dos amigos se distanciando. Dos pais preocupados. E do “tio” que ele visitava duas vezes por semana para conversar, deitado em um sofá estranho.

Uma lágrima escorre pelo seu rosto, abrindo caminho pela sujeira. Quer chorar, da mesma forma que chorava na escola, no banheiro. Escondido das outras crianças, que dele riam. Ele ainda ouve as risadas, e vê os dedos apontando.

Agora, pelo menos, ele tem amigos de verdade. Eles são estranhos, e podem até não conversar com ele. Mas, de alguma forma, sente que eles dedicam a própria vida para ele. Sente-se especial.

Fica olhando o movimento, esperando as pessoas do seu passado finalmente falarem que era tudo brincadeira. Só não entende porque eles não vieram no 1º de Abril dos outros anos. Também não entende porque aquelas crianças do outro lado da rua o encaram. Devem achar ele louco. Aquelas três, carecas e com a pele levemente azulada.

Decide que ainda falta muito para o dia acabar. Que o jeito é ignorar as crianças, esperar e ensaiar a sua cara de surpresa.